Sim, tive que chegar ao segundo decénio de vida para me deparar com a primeira situação em que temi por ela. Não há qualquer tipo de exageros na minha declaração. Foi em plena noite de S.João, na saída da ponte D.Luiz para o lado de Gaia, tudo fruto de um perigosíssimo ajuntamento de pessoas num espaço verdadeiramente exiguo para tanta gente (não vou arriscar um número, mas imaginem o cais de Gaia repleto de gente a perder de vista).
Deficientes manobras de controlo de multidões por parte da polícia originou uma situação de completo engarrafamento humano, com pessoas que tencionavam passar para o lado do Porto a impedir a passagem das que tomavam o sentido contrário e vice-versa, situação que foi agravada pelo suposto fecho da passagem pela ponte para os que se encontravam do lado de Gaia por um determinado período de tempo, o que nos colocou perante o perigo de um possível esmagamento de pessoas, pois vi pessoas a sentirem-se mal, a perder os sentidos, testemunhei a estupidez humana em situações destas, mas mais preocupante, comecei a sentir pânico e a vê-lo espalhar-se em meu redor, o rastilho que poderia dar origem ao caos total. Aí senti-me insignificante, dependente do mero acaso das circunstâncias, sem qualquer controlo sobre a minha situação, um dos piores sentimentos que experimentei.
O estudo do fenómeno das multidões já é antigo e com conclusões retiradas e comprovadas que me levam, e deviam levar qualquer pessoa, a evitá-las a todo o custo. Sabia que quem se encontrava a ser apertado ao meu lado não hesitaria em passar por cima de mim para escapar em caso de crise e em puro desespero, que haveriam pessoas a atirar outras ao rio sem qualquer contemplação e eu ali com os meus deficientes recursos de nadador. No fundo, o egoísmo transfigurado em sobrevivência, na sua acepção mais primária.
Todas as preocupações quotidianas me pareceram insignificantes naqueles momentos, tudo se reconduziu ao bem mais essencial, a vida e a sua preservação.
Mas, felizmente, tudo acabou bem quando conseguimos chegar à zona das esplanadas, onde encontramos um espaço para nos sentarmos. acabando a situação gradualmente por se normalizar. No dia seguinte, constatei que nenhum meio de comunicação fez qualquer mênção ao sucedido. Duvido que nenhuma voz, nas ondas do éter, tenha chegado ao ouvido destes senhores da comunicação, principalmente julgando pelo número de pessoas envolvidas na situação. Quando, se calhar, são os próprios envolvidos nestas situações de perigo encolhem os ombros por não lhes ter sucedido nada e assobiam para o lado, então não é de estranhar o alheamento de terceiros, a culminar nos governantes. Não se surpreendam com ausência de planos de emergência e de outras e melhores medidas até ocorrer algo de verdadeiramente grave. Isto não é ser fatalista, coisa que não sou, mas sim realista. A prevenção acima de tudo.
Ao chegar a casa, ligo a televisão e aparece-me A Lista de Schindler, e um pensamento que já tinha tido umas horas antes voltou-me a assaltar: Quão pálido e insignificante parece tudo o resto quando é a vida que está em jogo?
Considerem isto um acto de solidariedade da minha parte, abstraiam-se por momentos do vosso trabalho e dêem uma pequena escapadela para voltarem revigorados para a labuta diária.
Desfrutem.
Mau demais para permanecer não-publicado. Outrora houve uma banda que tomou o mundo de assalto. Eles chamavam-se Toto...